Quando refletimos sobre a deficiência, várias representações podem surgir: uma tragédia, um castigo divino, uma fonte de inspiração, uma doença, um problema individual, uma simples diferença.¹
Contudo, proponho uma perspetiva diferente: a deficiência é uma diferença no funcionamento da mente e, ou do corpo que, em interação com barreiras sociais, culturais e físicas, resulta em dificuldades na participação equitativa da pessoa com as outras.¹ A deficiência é então uma construção social, dinâmica por definição, e não uma característica inerente da pessoa. A natureza não delimita o que constitui um corpo ou funcionamento normal; são os seres humanos que o fazem. E as condições sociais de existência marcam a vivência com os nossos corpos e mentes.
Eu sou uma pessoa com deficiência, neurodivergente, o que significa que a minha mente e neurologia funcionam fora das normas sociais. Mas não é isso que me faz uma pessoa com deficiência. A deficiência não é um fenómeno individual. Ela é um reflexo de uma sociedade que ainda não está preparada para nós. Não existe deficiência sem sociedade.
A deficiência surge numa relação interdependente entre as nossas diferenças, a cultura e as barreiras do meio. A medicalização, patologização (denominar de doença) e individualização das nossas dificuldades têm-nos afetado profundamente. Muitas vezes, levam-nos a acreditar que as nossas dificuldades são falhas pessoais, quando, na verdade, surgem em conjunto com as barreiras que a sociedade cria e reproduz. Uma vez internalizada esta narrativa, mais difícil fica de questionar a falta de acessibilidade. Afinal, se o problema está em nós, não é da responsabilidade da sociedade mudar. Sem olhar para o social, removemos a responsabilidade do meio.
Acredito fielmente que parte da discriminação contra as pessoas neurodivergentes, e contra outras pessoas com deficiência, vem de uma sociedade crescentemente individualizada em que se crê que os indivíduos devem ser autossuficientes. A verdade é que o ser humano é social. A autossuficiência é um mito.
Todas as pessoas precisam de ajuda, mas nem toda a ajuda é vista da mesma forma.
Enquanto uma criança pequena que precise de ajuda a comer será percebida de forma natural, podendo confiar nas instituições para acolher essa necessidade, dentro do paradigma patológico, a mesma necessidade numa pessoa adulta será somente tolerada, uma vez patologizada e vista como errada. Não estamos necessariamente doentes ou com algo de errado em nós. O que falta é o atendimento das nossas necessidades. Uma sociedade que reconheça o capacitismo e as barreiras que nos impedem de participar plenamente em comunidade.
Mencionei ser neurodivergente. Reconheço-me desta forma, pois entendo que a minha mente e neurologia sai das normas sociais. Isto por si só já é revolucionário: normas sociais? Então não são problemas da natureza? Não, não são, a natureza não define doenças ou erros, ela apenas apresenta variações, esta é a sua grande característica, variar. Dentro da perspetiva da neurodiversidade, não existem doenças, ou perturbações, mentais ou neurológicas. Não existem respostas erradas ao meio.
Não estamos doentes ou a funcionar mal pelas nossas dificuldades ou sofrimento. Estas são respostas naturais.
Toda a gente sofre ou possui dificuldades em algum momento da vida, com que autoridade vamos dizer que certa resposta não é correta? Segundo uma norma estatística? A quem ela realmente serve? Qual é o cérebro normal? E quem realmente o tem? Ninguém!
Pensemos na depressão, por exemplo, é com certeza um problema de saúde mental, não o vou negar. É um problema, pois afeta a saúde mental, mas não deve ser vista como uma doença.
Todas as pessoas poderão sentir tristeza ou sofrimento psicológico a níveis profundos em algum momento das suas vidas, a patologização define um limite do que é normal e toma o que desvia desse limite como uma resposta incorreta. Se uma pessoa é socialmente excluída, é discriminada diariamente e não tem acesso básico às suas necessidades, não será natural instalar-se uma resposta depressiva? Se morre um familiar e a pessoa perde toda a sua rede de apoio, não será natural responder desta forma? A psiquiatria diz que não, que a pessoa pode sofrer temporariamente, mas que existem limites nesta resposta. Fará isso realmente sentido? Se as condições que levaram à depressão não são resolvidas, não existe quantidade nenhuma de medicação que irá “curar” o mal-estar que a pessoa está a sentir.
Atenção, não nego o benefício que os antidepressivos poderão causar, mas o que chamam de “doença mental”, na verdade, pode ser uma resposta humana natural a condições desumanas. E esta é uma questão social, não algo que medicação alguma irá resolver.
O ser humano precisa de apoio e isto é natural. Sofrer é natural. Robert Chapman (2017, tradução livre) resume isto da forma mais bela possível ao falar da esquizofrenia:
“(…) todas as formas humanas de ser vêm com os seus próprios desafios e limitações: faz parte da condição humana sofrer, passar por crises de identidade e mudar à medida que a vida acontece.”²
A ideia da “doença mental” e da “perturbação neurológica” enquanto uma construção social vê-se bem quando olhamos para a histórica patologização das pessoas LGBT+.
Já lá vão os tempos em que a psiquiatria definia ser lésbica, gay, bissexual ou trans como uma “doença mental”, mas aconteceu. E em algumas partes do mundo, infelizmente, isso ainda acontece. Por exemplo, só em 2018 caiu o diagnóstico que considerava doença (patologizava) as identidades trans. Agora imagina como era vista uma pessoa LGBT+ com deficiência!
O que se percebeu foi que a orientação sexual e a identidade de género não são patológicas, e que o sofrimento que pode estar associado a certas manifestações das mesmas é socialmente determinado, contextualizado no espaço e no tempo, e, por consequência, uma resposta normal. O mesmo acontece ainda hoje com outros diagnósticos. O nosso sofrimento é normal, no sentido que vem de um contexto, e não pode ser desconectado de uma sociedade sem apoio. A ideia de “doença mental” ou “perturbação neurológica” remove as pessoas da sua subjetividade, história e contexto.
Voltemos ao luto. Pensa numa pessoa querida que tenhas perdido, ou se talvez nunca tenha acontecido, pensa em alguém ao teu redor em que isso aconteceu.
Quase toda a gente conhece uma pessoa que foi profundamente afetada pelo luto. Quanto tempo deve durar o estado de luto? Conheço pessoas que vivem o luto há anos. Acho que seria até senso comum para muitas pessoas admitir que o luto é um estado permanente ou dificilmente superado. Bem, 6 meses.³ Fica explícito como os diagnósticos psiquiátricos permitem reforçar e baseiam-se na ideia de normatividade quando um dos critérios que define este diagnóstico se foca nos sentimentos após a morte de uma pessoa querida à pessoa enlutada: se existe uma resposta de luto persistente e generalizada caracterizada por um desejo contínuo relativamente à pessoa falecida ou uma preocupação persistente acompanhada por uma intensa dor emocional, estas devem ultrapassar as normas culturais, sociais e religiosas do contexto específico de um indivíduo³.
Da mesma forma, achar que a neurodiversidade é uma doença (patologizar) é mais uma forma de ver o desvio das normas sociais, mas especialmente infeliz, uma vez que decide colocar certas formas desviantes, de existir mental e neurologicamente, como formas incorretas de funcionamento dos nossos sistemas.
Olhe-se, por exemplo, a esquizofrenia, as suas características estão intimamente ligadas à regulação do comportamento em sociedade: falar de forma ilógica e desligada, ouvir vozes ou ter alucinações, ter ideias de grandeza ou perseguição, e respostas vistas como incongruentes às situações. Em muito isto se interliga com a regulação do discurso, comportamento e autoconceito. Estas regulações pertencem ao mundo social, não à natureza.
A psiquiatria e a psicologia não são objetivas, nós sabemos do seu viés e como são interdependentes com outras instituições. Quem fala da esquizofrenia também pode falar de vários outros diagnósticos, como o autismo. O que significa ter dificuldades na comunicação social? O que significa dificuldades a ajustar-se aos diversos contextos sociais? Estas são características do diagnóstico de autismo, mas a realidade é que o que isto significa é subjetivo e social, não biológico. Os próprios manuais de diagnóstico reconhecem isto quando falam que as características devem desviar-se das normas socioculturais para receber um diagnóstico.
O dinheiro é uma construção social, mas também tem impacto psicológico. Tenta rasgar uma nota e verás!
Apesar de algo ser uma construção social, isso não significa que não seja real ou que não tenha fundamento na realidade material.⁴ O dinheiro é uma construção social, mas também tem impacto psicológico. Tenta rasgar uma nota e verás.⁴ Além disso, organiza o mundo; pessoas com diferentes posições económicas terão vidas completamente diferentes.⁴ A nossa contínua associação com ele, atribuindo-lhe valor, mantém-no ativo.⁴ O dinheiro é real, mas também é socialmente construído.
Da mesma forma, o que é chamado de “perturbação neurológica” ou “doença mental” compõe experiências internas, comportamentais e sociais reais, mas a ideia de que essas experiências são patológicas é socialmente construída. Mesmo que essas experiências tenham uma base interna, em algum grau, as maneiras com que entendemos essas experiências é socialmente construída, porque para entender essas experiências nós temos de as colocar em linguagem, classificá-las e desenvolver limites para as diferenciar de outras. Nunca lemos o mundo de maneira objetiva, mas dependente da linguagem a que temos acesso para o discutir.
Tendemos a acreditar que as instituições psiquiátricas têm a autoridade final para ditar a realidade neurológica e mental, mas também essas instituições não se encontram independentes do mundo construído. O que hoje é tido como patológico, nem sempre foi. Por exemplo, “falar de forma ilógica” ou “sem significado aparente” já foi visto, e ainda o é em alguns contextos, como uma forma legítima de conhecimento. O que a psiquiatria, preocupada pela razão, chama de glossolalia*, pode ser visto em alguns contextos cristãos como algo normal, positivo ou celebrado, ao invés do fruto de defeitos biológicos e objetivos. Por outras palavras, o que a psiquiatria chama de patológico num determinado contexto, pode ser visto como “normal” noutros ou contextualizando o fenómeno. O paradigma patológico remove esta subjetividade da pessoa, transformando-a em paciente, incapaz de entender a sua própria realidade e agir sobre a mesma.
“Sabemos o suficiente sobre o teu sofrimento e a tua condição especial (coisas das quais não tens noção) para reconhecer que é uma doença; mas temos familiaridade suficiente com esta doença para saber que não podes exercer nenhum direito sobre ela ou em relação a ela. A nossa ciência permite-nos chamar a tua loucura de doença, e, consequentemente, nós médicos estamos qualificados para intervir e diagnosticar uma loucura em ti que te impede de ser um paciente como os outros: assim, serás um doente mental.”, retrata assim Foucault (1974, tradução livre) as instituições psiquiátricas.⁵
Como pessoa obsessivo-compulsiva (salto a palavra perturbação propositadamente), o conhecimento que produzo através do meu pensamento obsessivo, prolongado e repetitivo, sobre vários assuntos é celebrado quando útil para a sociedade. No entanto, quando esta diferença se reflete no tempo que demoro a tomar decisões ou a compreender algo, é patologizada ou mal-interpretada.
Lembro-me de uma ocasião, por volta dos 16 anos, em que fui a uma loja comprar algo para lanchar. Obsessivo sobre o que escolher, percorri a loja de um lado para o outro, observando cada produto com cuidado e tocando neles para os avaliar. Ao dirigir-me para pagar, o dono da loja pediu-me para colocar os produtos em cima do balcão e insinuou que eu estava a esconder algo. Confuso, disse que não tinha nada… No momento seguinte, vi-me a ser despido e apalpado no peito e nas calças.
As representações existentes sobre como existir em público e a criminalidade, e a sua ligação com o meu comportamento, levaram o dono da loja a retirar a minha autonomia sobre o meu corpo por pensar que eu estava a roubar.⁶ Dificuldades como estas são posteriormente utilizadas na psiquiatria para evidenciar a natureza patológica e “objetiva” do meu funcionamento. Se provocam estes desafios, por que não seriam consideradas uma “doença mental”? Ignorando as normas e as representações sociais que formulam e exacerbam as minhas dificuldades. O conhecimento vivido por mim, é substituído pelo conhecimento médico.
A neurodivergência representa a violação de normas do desempenho social: olhar para a pessoa que está a falar connosco, entender o significado do que é dito e feito, controlar a postura e os gestos, manter a “produtividade”, etc. Todas as pessoas violam estas normas em algum momento da vida, o que diferencia a resposta que se dá a essa violação é a tolerância do meio para com a mesma.
Por exemplo, o comportamento de uma pessoa que não olhe nos olhos de outra tida como “superior”, poderá ser tolerado ou até esperado, mas o mesmo não acontecerá com alguém que não se atribua uma motivação aparente ou percebida como justificada, recebendo o rótulo de “doença mental” ou “perturbação neurológica”. As pessoas autistas frequentemente mostram diferenças no contacto visual, mas, de forma simplista, uma vez desviantes dos contextos previstos para estas diferenças, estas formas de comunicação são patologizadas.
Isto não significa dizer que a psiquiatria e a psicologia são simplesmente instituições mal-intencionadas que procuram controlar a norma. Temos observado muitas mudanças com um progressivo foco no bem-estar das pessoas, mas os sistemas que temos atualmente são fundamentados na manutenção da norma e julgam a ideia de bem-estar através dela.
É necessário construir uma sociedade verdadeiramente inclusiva, onde tenhamos as mesmas oportunidades e as nossas diferenças sejam reconhecidas tal como são: diferenças, que podem estar acompanhadas por desafios, mas mesmo assim são diferenças. Quebrar as barreiras e criar um mundo mais justo e acessível para todas as pessoas.
*Glossolalia: prática associada a contextos religiosos, caracterizada pelo ato de falar em linguagem incompreendida ao indivíduo.
Gostas deste conteúdo?
Deixa-nos os teus comentários e apoia o nosso trabalho.
Fontes consultadas:
- Fernando Fontes (2016) — Pessoas com deficiência em Portugal.
- Robert Chapman (2017) — Schizophrenia as Neurodiversity.
- Peter Clement Lund (2020) — Deconstructing grief: a sociological analysis of Prolonged Grief Disorder.
- Alexander Avila (2023) — TikTok Gave Me Autism: The Politics of Self Diagnosis.
- Michel Foucault (1974) — Psychiatric Power. In Ethics: Subjectivity and Truth.
- Para entender como partimos de representações para desenvolver a interação, ler: Erving Goffman (1993) — A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias.
- Peter Berger e Thomas Luckmann (1966) — Social Construction of Reality.
- Ayesha Khan (2022) — Decolonizing= abolishing bioessentialism & the neurodivergent/ neurotypical binary.
Autor
-
Com uma formação como Técnico de Apoio Psicossocial e atualmente estudante de uma Licenciatura em Sociologia, iniciou o seu ativismo em Ovar aos 16 anos. Hoje, continua a estudar e intervir em várias temáticas sociais.
View all posts
Uma resposta
Nossa incrível, encontrei a minha turma!