Os meios de comunicação digital permitem mais do que nunca o acesso à comunicação e informação. Contudo, simultaneamente, amplificam ao máximo a capacidade de disseminar informações falsas, provocar o pânico moral e alimentar a sensação de que estamos a sofrer uma invasão de eventos que alteram a realidade social, mal compreendidos pela população geral. Infelizmente, a capacidade de distinguir informações reais das manipuladas permanece um privilégio.
A desinformação é o uso de informações falsas, criadas, apresentadas e divulgadas com o intuito de enganar intencionalmente o público.
Uma notícia ou informação falsa, ou retirada do seu contexto, usada para difamar um grupo, pode rapidamente transformar-se numa rede de pânico social. Quando um grupo marginalizado é alvo desse tipo de desinformação, isso pode reforçar as narrativas já dominantes que sustentam a discriminação.
Este é um “sintoma” de uma época caracterizada pelo “excesso de informação”, onde cada pessoa, teoricamente, consegue registar o que afirma pensar, ouvir, ler ou ver. Se anteriormente, os jornais, a televisão e a rádio serviam como os principais meios de comunicação de massas, atualmente, uma mensagem num grupo de WhatsApp pode ter um efeito similar ou superior aos anteriores. Isso não é inerentemente mau, uma vez que amplia as vozes que podem ser ouvidas, no entanto, também aumenta a possibilidade de informações incorretas interferirem na formação do conhecimento.
Pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo (LGBTI+), juntamente com outras que não se enquadram nas normas de género, fazem parte dos principais grupos vítimas da desinformação. Narrativas que retratam os movimentos LGBTI+ como uma forma de “colonialismo”, “ameaça à segurança das crianças e mulheres”, uma “ideologia de género” e a destruição da “ordem natural” circulam nas redes sociais, discursos políticos e interpessoais.
A 17 de maio do ano passado, assim como este ano, várias câmaras municipais promoveram o hastear da bandeira arco-íris para assinalar o Dia Nacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia. No X (anteriormente conhecido como Twitter), lemos por parte do Primeiro-Ministro, acompanhado de uma foto do momento: “No Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, hasteei a bandeira arco-íris reafirmando o nosso compromisso contra o preconceito. Continuaremos a desenvolver políticas públicas de combate à discriminação. Por um país mais igual, livre e inclusivo.”
A 3 de julho desse ano, lemos no Facebook sobre essa mesma imagem: “#Vergonha — Governo obriga polícias e câmaras municipais a hastear a bandeira LGBT.” Ao lado, o autor lê a suposta “lista de prioridades socialistas”, onde se incluem frases como “que se lixe o aumento da mortalidade geral e materno-infantil” ou “que se lixe o caos nas urgências e no SNS” ou ainda “que se lixe o caos nos aeroportos”. Para concluir, “O importante é aumentar a base eleitoral, neste caso da comunidade LGBTI+…” Este é um bom exemplo de como provocar o pânico em massa. Retiram a imagem original do seu contexto e data originais, criando a ideia de que a ordem social está em perigo. Identificam um grupo marginalizado como inimigo e estabelecem que o poder está a ser usurpado por eles, impondo as suas identidades a nível nacional, em detrimento das necessidades da população.
No entanto, isto não foi exatamente o que aconteceu. Como mencionado anteriormente, a iniciativa surgiu no contexto do 17 de maio e foi uma ação de câmaras municipais individuais que decidiram hastear a bandeira por autonomia, não por ordem institucional. Neste contexto, exploram-se as inseguranças que as pessoas sentem relativamente aos problemas nacionais e tentam fazer parecer que esses problemas estão a ser negligenciados devido aos direitos LGBTI+.
Esta é uma característica importante da desinformação. Ela capitaliza sobre os medos já presentes na população e atribui a sua origem a grupos que essa população não compreende. Isso torna-se particularmente perigoso quando as pessoas começam a identificar-se como dominadas por uma suposta “ideologia” que desconhecem, sentindo uma possível desestabilização da ordem social atual. Isso leva as pessoas a acreditar que não tiveram participação na construção dessa ordem e que estão a ser forçadas a aceitar algo que não compreendem, o que, de certa forma, pode parecer uma experiência de colonização, onde uma população externa passa a exercer controlo sobre outra.
Outra ideia desinformada sobre as pessoas LGBTI+ é a de que os movimentos pelos direitos LGBTI+ promovem o abuso infantil e “formas não naturais de sexualidade”.
Em 2016, circulou nas redes sociais um suposto folheto atribuído ao movimento LGBT, afirmando a reivindicação da pedofilia como uma “orientação sexual” válida que deve ser afirmada e expressa em conjunto com o movimento LGBTI+. Essa informação era falsa e partiu de uma estratégia de desinformação destinada a criar pânico moral relativamente à comunidade LGBTI+, e claro, resultou. Mais uma vez apoderaram-se dos grandes medos da população para vilanizar um grupo já estigmatizado. Neste caso, o bem-estar das crianças vê-se como uma grande preocupação, e bem, mas erra quando associa a libertação LGBTI+ com um risco para a segurança infantil. Lembro-me da Hungria quando passou um projeto legislativo contra o abuso sexual de menores, e nele incluiu leis anti-LGBTI+, mas também de Portugal, ainda no mês passado, onde se viu protestos anti-LGBTI+ na apresentação do livro “No Meu Bairro” devido à sua inclusão LGBTI+ e o uso do “Sistema Elu” numa obra infantil.
Onde há histórias falsas de promoção de abuso infantil, juntam-se histórias de abuso de animais.
No ano passado, André Ventura, líder do Partido Chega, demonstrou a sua vontade de desinformar, ao afirmar no seu Facebook, que a Alemanha tinha a caminho um projeto de lei para descriminalizar o sexo entre pessoas e animais, associado às reivindicações LGBTI+. Destacou ainda, nas redes sociais, o título de uma notícia que sugeria a “Descriminalização do sexo com animais” na Alemanha, e a adição do “Z”, de “Zoofilia”, na sigla “LGBTQI+”. “Mas que loucura é esta? Agora querem descriminalizar o sexo entre pessoas e animais? Será que só o Chega quer pôr fim a esta loucura?”, afirmou. Bem, nem a suposta reivindicação LGBTI+, nem o projeto de lei eram reais. A “notícia” mencionada por Ventura surgiu em 22 de agosto de 2022 num site brasileiro chamado “Jornal Tribuna Nacional”, conhecido por disseminar informações enganosas e frequentes teorias de conspiração. Esta notícia alegava, como mencionado anteriormente, que havia uma suposta intenção de adicionar a letra “Z” à sigla “LGBTQI+” e uma pressão sobre o governo alemão para descriminalizar o sexo entre animais.
Para sustentar essa alegação, o site utilizou um vídeo de uma pequena manifestação ocorrida na Alemanha em 2014, que se opunha à criminalização do sexo com animais. No entanto, esse vídeo foi retirado do contexto de 2014 e apresentado como se fosse de 2022. A manifestação não tinha nenhuma ligação com o movimento LGBTI+ e não teve sucesso na sua tentativa de revogar a lei que proíbe o sexo com animais.
Ainda no assunto do abuso sexual, é uma frequente preocupação o suposto abuso sexual de mulheres como consequência do direito das pessoas trans usarem as instalações correspondentes à sua identidade de género.
Argumentam, as esferas conservadoras, que permitir que mulheres trans acedam a casas de banho públicas femininas pode levar a abusos por parte de agressores sexuais que afirmam ser mulheres. No entanto, com pelo menos 5 anos da lei da autodeterminação publicada, permanece-se sem conhecer quaisquer casos de abuso sexual de mulheres cis em casas de banho públicas por parte de supostas mulheres trans.
A disseminação da desinformação é um desafio generalizado na era digital, comprometendo a compreensão da realidade social e reforçando os estereótipos existentes na sociedade. No entanto, quando afeta comunidades já dominadas pelo desconhecimento da população em geral, ela consegue marcá-las com narrativas erróneas compartilhadas.
Antes do conhecimento científico, o indivíduo navega pelo mundo com base no que percebe e no que lhe é relatado. Numa sociedade onde a ciência não está democratizada, a desinformação, independentemente de quão desconectada da realidade objetiva esteja, serve como guia para o nosso comportamento. As consequências da desinformação existem independentemente da veracidade do que motiva o comportamento. Isso torna o fenómeno perigoso por levar as pessoas a agir diante de “ameaças” que, na realidade, não existem. Os medos preexistentes na sociedade e na mente das pessoas moldam quais são as histórias criadas, sejam eles relacionados à segurança, à saúde, ou ao sentimento de que os valores, normas e crenças que estruturam as nossas ações quotidianas estão a ser perdidos. As pessoas podem se sentir desmotivadas relativamente ao pensamento crítico, uma vez que as informações que recebem, mesmo sendo falsas, desafiam o seu senso de estabilidade pessoal e social.
É fundamental reconhecer a importância do combate à desinformação, e da capacidade de questionar e verificar as informações que recebemos. A desinformação não só prejudica as pessoas LGBTI+, mas todas as populações marginalizadas, e incapacita a tomada de decisões informadas das pessoas sobre as suas vidas e organizações. Torna-se urgente o desenvolvimento de uma sociedade com literacia mediática, onde cada ação é guiada de maneira informada. Ao combater a desinformação, podemos contribuir para um mundo em que todas as pessoas se sintam respeitadas e valorizadas, independentemente da sua orientação sexual, identidade de género, expressão de género ou características sexuais.
Mais sobre o Autor: Pedro Valente começou o seu ativismo pelos direitos LGBTI+ aos 16 anos, em Ovar. Paralelamente, iniciou a sua formação como Técnico de Apoio Psicossocial no Porto. Hoje, como estudante de Sociologia na Universidade do Minho, continua a explorar e intervir em várias temáticas sociais.
Gostas deste conteúdo?
Deixa-nos os teus comentários e apoia o nosso trabalho.
Autor
-
Com uma formação como Técnico de Apoio Psicossocial e atualmente estudante de uma Licenciatura em Sociologia, iniciou o seu ativismo em Ovar aos 16 anos. Hoje, continua a estudar e intervir em várias temáticas sociais.
View all posts
2 Responses
Excelente artigo!
Efetivamente a desinformação é um dos grandes males da sociedade.
Infelizmente, as redes sociais que na sua génese seriam excelentes, podem, se mal usadas, alimentar pânico, fobia, descriminação, ódio, entre outros sentimentos que nada trazem de bom a uma sociedade que se quer justa.
Sem dúvida, Andréa Pinho. A desinformação perpetuada por quem usa as redes sociais tem um impacto tremendo nas nossas vidas e está a trazer uma onda inacreditável de ódio contra estas comunidades mais marginalizadas.