Histórias Inacreditáveis – Dia da Memória Intersexo

imagem de dois pais numa cama de hospital com um bebé. A bandeira intersexo por trás. Texto: Dia da Memória Intersexo

“Enquanto mulher, era demasiado forte, demasiado deselegante, demasiado alta, demasiado masculina. Enquanto homem, demasiado suave, demasiado fraca, demasiado feminina. Mas o seu corpo e aparência, mantiveram-se!” “Barbin considerava-se um anjo, daqueles seres andróginos, sem sexo… uma alma pura.”

 

Mas quem foi Herculine Barbin?

Há 185 nos atrás, a 8 de Novembro de 1838, nascia na França uma das pessoas que iria marcar este dia como o Dia da Memória Intersexo. Adélaïde Herculine Barbin era o seu nome de registo ao nascimento, cujo sexo designado à nascença foi fêmea. Sabe-se que viveu e cresceu num orfanato a partir dos 6 anos  e tornou-se docente. Durante a época em que lecionou na escola, estabeleceu uma grande amizade com Sara, a filha da diretora. Acontece que Herculine e Sara apaixonaram-se e começaram a ter uma relação às escondidas. 

A certa altura, supõe-se que por uma dor abdominal, Herculine foi ao médico. Na consulta com o médico, este descobriu que Herculine, apesar de ter nascido com uma vulva (e vagina),  possuía também (internamente) um pequeno pénis e testículos. 

As autoridades envolveram-se no caso e exigiram que Herculine se demitisse do cargo de docente, abandonasse a vila e começasse a viver como um homem, uma vez que o médico havia determinado que era um.

Adelaide Herculine mudou o seu nome para Abel e o caso ganhou grande atenção na altura. No entanto, sabe-se que enquanto Abel, viveu infeliz – tinha de fingir ser uma pessoa que não era.  A certa altura, foi proibida de ver a sua amada e por isso, mudou-se para Paris, onde viveu os últimos anos da sua vida trabalhando num “memoir”, onde detalhou as suas experiências de vida enquanto pessoa intersexo.

Herculine morreu no seu apartamento em 1868, colocando, aparentemente, o fim à sua vida de apenas 30 anos (suicídio).

*nota: existem várias versões sobre a história de Barbain, mas nada melhor do que ler o seu memoir para perceber o que sentia e o que passou.

Esta é apenas uma história de muitas! Muitas vidas e corpos de pessoas intersexo são colocadas nas mãos de profissionais de saúde que não aceitam as mais de 40 variações de características sexuais conhecidas mundialmente para se nascer. A visão binária dos sexos e dos géneros coloca fim à liberdade e vida de muitas pessoas.

 

Porque esta história é importante?

É importante para relembrar que todos os corpos nascidos são perfeitos como são. Para lembrar que o direito à integridade corporal de cada pessoa e à identidade de qualquer ser humano que nasce é inviolável! As normas sociais ou aquilo que a sociedade acha que é normal ou anormal, não deve sobrepor-se à vida e a autodeterminação das pessoas que nascem ou que desenvolvem variações nas suas características sexuais.

Celebramos por isso, dia 8 de Novembro, o Dia da Memória Intersexo.

 

Para tal trazemos-te também informações sobre o estudo da Agência Europeia para os Direitos Fundamentais, cujos resultados foram aprofundados num estudo realizado colaborativamente entre ILGA Europe e Oii Europe. Trazemos-te alguns dados interessantes:

 

Revelar ou não revelar que se é intersexo?

A maioria das pessoas intersexo (cerca de 44.39%) não estão abertas a revelar a outras pessoas que são intersexo, comparando com 30.84% das pessoas LGBTQ endosexo inquiridas sobre a sua abertura em revelar que são pessoas LGBTQ.

Talvez pela história mencionada acima consigas perceber porque não o revelam!
 

Como auto-avalia a sua saúde?

Em relação à saúde, a avaliação dada pelas pessoas intersexo revela-se
muito inferior à dada por pessoas endosexo da comunidade LGBTQ. Cerca de 55.17% das pessoas intersexo indicaram ainda que possuem um problema de saúde de longa duração, comparativamente com apenas 33.66% de todas as pessoas LGBTQ inquiridas.

 

Com que idade percebeu que era intersexo?

Em relação à idade de descoberta sobre ser uma pessoa intersexo (a pergunta: Que idade tinha quando percebeu que tinha variação de características sexuais), mais de 40% afirma só ter descoberto entre os 11 e os 15 anos de idade, quase 25% descobriu entre os 16 e os 20 anos e ainda cerca de 11% entre os 20 e os 21 anos. Isso significa que crianças com idades igual ou inferior a 10 anos raramente ficam a saber que são intersexo, uma vez que no total, apenas cerca de 18% referiu que percebeu que era uma pessoa com variações nas características sexuais antes dos 10 anos.

 

Descrição: figura 3. Respostas agrupadas por idade a “Em que idade percebeste que tinhas variação nas características sexuais”?

 

Com que idade (e se) realizou procedimentos cirúrgicos?

Já no que respeita à realização de procedimentos cirúrgicos, cerca de 12.80% afirma ter tido a sua primeira cirurgia ou intervenção médica para modificar as suas características sexuais logo à nascença

Em Portugal, as cirurgias ou intervenções médicas desnecessárias em bebés e crianças intersexo são proibidas por lei. No entanto, é comum a falta de conhecimento por parte dos pais (responsáveis parentais) desta legislação (lei 38/2018) e igualmente de quais são os seus direitos. Não deveria ser comum, mas infelizmente, sabe-se que muitos profissionais de saúde continuam a aconselhar estes pais a autorizar intervenções adiáveis e irreversíveis para que os corpos dos seus bebés voltem a parecer-se com um determinado sexo, consoante ditam as normas e estereótipos de género binárias.

 

Que consequências podem ter estes procedimentos cirúrgicos para bebés e crianças intersexo?

 

Conforme Pedro Valente salienta no seu artigo para o Dezanove, “na grande maioria dos casos, tais intervenções… podem ter efeitos extremamente negativos nas crianças…São muitos os danos provocados por estas cirurgias realizadas sem consentimento informado, como é o caso da perda de sensibilidade genital, esterilização, consequências psicológicas significativas e ainda o risco da pessoa não se identificar com o “sexo medicamente escolhido” (as características sexuais alteradas). É aqui que algumas pessoas intersexo podem igualmente identificar-se como pessoas trans.


O estudo indicado acima, mostra ainda que para as pessoas intersexo que realizam uma intervenção ou procedimento – cirúrgico, hormonal ou outro –
43.21% reportou ter dificuldades registar o seu género (ou sexo, em alguns países, como em Portugal) no registo. Isto pode indicar que uma grande percentagem de pessoas intersexo desejam mudar o sexo e/ou género registado (atribuído à nascença). 

 

Se se nasce um bebé intersexo, como se faz o registo?

Em Portugal, quando nasce um bebé, obrigatoriamente terá de ser catalogado de macho ou fêmea, pois não existem marcadores de sexo que se reportem a outros que não os binários macho/fêmea. É um problema de base à partida também para pessoas não binárias, uma vez que não existe marcador de género, mas sim marcador de sexo. 

M
as deve ou não haver um marcador de sexo e/ou género? A discussão em torno do tema é enorme e não gera consenso. Há quem acredite que um terceiro marcador de sexo ou género no registo, e por consequência no cartão de identificação, causaria mais transtorno e discriminação do que benefícios. Hoje não iremos aprofundar tal discussão.

No entanto, este pode ser um problema para pessoas intersexo, pois o estudo revelou que cerca de 23.03% se identifica como pessoa “não binária” e portanto, a ausência da possibilidade de registar um sexo e/ou género não binário é um obstáculo ao reconhecimento destas identidades.

Tal como com muitas pessoas trans, também as pessoas intersexo se identificam como Homem ou como Mulher, mesmo as que pretendem/realizaram uma mudança de marcador de sexo e/ou género que cabe no binarismo.


A informação passada aos pais (responsáveis parentais) é de qualidade?

Preocupante é também o facto da maioria das pessoas que exerce a responsabilidade parental (pais), mesmo tendo dado autorização para a realização de intervenções em bebés e crianças intersexo,
não obteve informação suficiente anterior à intervenção. Um outro estudo já havia revelado que responsáveis parentais que recebem informação medicalizada (providenciada por profissionais de saúde) têm 3 vezes mais propensão a autorizar/consentir cirurgias do que os que recebem informação não-medicalizada (por exemplo, providenciada por organizações intersexo).

Isto pode ser problemático porque na ausência de dados conclusivos que mostrem “benefícios” destas cirurgias em idades precoces, e na presença de evidência robusta das suas consequências prejudiciais, há o perigo da informação médica fornecida aos pais venha a resultar em decisões irreversíveis e inadequadas.

E conforme referíamos acima, muitas das pessoas que exercem o poder parental sobre crianças intersexo, além de serem bombardeadas com informação de difícil compreensão sobre a “condição” do seu bebé ou criança, são muitas vezes pressionadas por profissionais de saúde a realizar procedimentos médicos com a promessa de que irão “reparar” a criança intersexo. E claro, na hora de tomar decisões que podem ditar a vida da criança, e sem ter um completo entendimento das consequências a longo prazo para a criança, acabam por ceder à pressão médica.

 

Como vivem algumas pessoas intersexo?

Diz o estudo da FRA, que as pessoas intersexo são as que reportam maior dificuldade (25.06%) em ver as suas necessidades básicas satisfeitas comparativamente com outras pessoas endosexo (13.91%) da comunidade LGBTQ. E essa dificuldade é ainda maior para pessoas intersexo pertencem a uma minoria étnica (incluindo migrantes) – 31.22%.

É também impressionante que 34.03% de pessoas intersexo reportaram ter experienciado uma situação de sem-abrigo durante a sua vida. Essa experiência aumenta para pessoas intersexo com deficiência passando para 49.55% e ainda mais para pessoas intersexo pertencentes a minorias étnicas (incluindo migrantes), ascendendo aos 53.42%

Obstáculos ao Emprego

 As pessoas intersexo podem sentir dificuldades em ter de explicar às entidades empregadoras porque existem espaços temporais de inatividade laboral ou escolar nos seus currículos, que resultam, por vezes, de hospitalizações a que estiveram sujeitas, ou quando não puderam trabalhar devido a traumas resultantes de falta de consentimento para intervenções não essenciais ou por crimes cometidos com base no ódio contra si. 

As situações que viveram na infância e durante a sua vida adulta podem ter levado à desistência escolar, fazendo com que o nível de educação adquirida seja mais baixo, quando comparado a outras pessoas endosexo. Por consequência, níveis mais baixos de escolaridade afastam estas pessoas de cargos laborais mais bem pagos. Estas dificuldades sentidas contribuem para as situações de sem-abrigo. 

 

Problemas familiares e situações de violência doméstica

Um estudo de 2021 revelou que um dos principais motivos pelos quais jovens intersexo se encontram em situações de sem-abrigo deve-se a situações de conflito familiar (72%), incluindo a decisão de sair de casa devido a violência doméstica.

Satisfação de vida

 Numa escala de 0 a 10, as pessoas intersexo reportaram estar menos satisfeitas (valor médio de 5.53) com a sua vida do que pares endosexo LGBTQ (valor médio de 6.41). As mulheres intersexo que se identificam igualmente como trans, reportaram menor satisfação (5.47), tal como pessoas intersexo não binárias (5.16). As pessoas intersexo com deficiência são as que reportam a menor satisfação com a sua vida (valor médio de 4.73).

Denunciar a discriminação

Entre a comunidade LGBTQI, as pessoas intersexo são as mais denunciam às entidades políticas as suas necessidades (10.24%), sendo que pessoas intersexo com deficiências são as mais ativas (24.46%), comparando com 2.11% de todas as pessoas LGBTQ inquiridas.

 

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