Dia Internacional da Memória Trans: Gisberta Salce, entre a Homenagem e a Controvérsia!

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A propósito do Dia Internacional da Memória Trans, que se comemora dia 20 de Novembro:

Após 17 anos sem Gisberta Salce, a mulher trans assassinada no Porto em 2006, foi com bom grado que soubemos no mês passado que a imigrante brasileira irá ser imortalizada com uma rua na cidade.

Gisberta Salce foi uma mulher trans, imigrante brasileira, que fazia trabalho sexual, vivia com VIH/SIDA e estava em situação de sem-abrigo em Portugal, na cidade do Porto, onde foi vítima de um assassinato motivado por transfobia. Esta descrição é relativamente genérica e, reconheçamos, marginalizada, mas de importância significativa na construção da sua identidade pública.

Aos 18 anos, deixou o Brasil para escapar de uma onda de homicídios contra pessoas trans em São Paulo, chegando a Portugal aos 20 anos. O problema global de homicídios motivados por violência transfóbica era bem real naquela época e persiste ainda hoje. O projeto Trans Murder Monitoring relata 320 casos de homicídios de pessoas trans nos últimos 12 meses. Embora seja difícil precisar se todos esses casos foram motivados por transfobia, não é difícil argumentar nesse sentido. O problema é tão grave que deu origem a uma data significativa: hoje, 20 de novembro, assinala-se mais uma vez o Dia Internacional da Memória Trans.

 

Gisberta, devido à multiplicidade das suas identidades marginalizadas, tornou-se um exemplo perfeito de discriminação múltipla e da teoria da interseccionalidade

As suas identidades não existiram isoladamente, interligaram-se e coproduziram-se, formando uma experiência acumulada de discriminação. As reações sociais à identidade trans levaram Gisberta a deixar o Brasil, formando a sua identidade imigrante. Eventualmente, com estatuto ilegal em Portugal, e incapaz de obter sustento suficiente através dos espetáculos que fazia, começou a envolver-se em trabalho sexual e a viver nas ruas, reforçando o seu estatuto marginalizado. O trabalho sexual ocupa uma parte importante da vida de várias pessoas trans, devido às dificuldades em aceder às economias formais marcadas por discriminação. A viver com VIH, o agravamento da infeção impediu-a de continuar a trabalhar no sexo, resultando na perda da fonte do seu sustento, e acabou por viver até o resto da sua curta vida num edifício abandonado. 

Como a história da Gisberta demonstra, o homicídio de pessoas trans, e as estruturas que o alimentam, não é uma realidade distante de Portugal. A 22 de fevereiro de 2006, depois de vários dias de agressões físicas e sexuais motivada por transfobia, por parte de um grupo de 14 rapazes entre os 12 e os 16 anos, Gisberta acabou morta num poço da cidade do Porto, aos 45 anos. A morte de Gisberta foi um choque a nível nacional, não sendo caso único, existindo, infelizmente, outros antes e após Gisberta, mas definitivamente o mais vivido no imaginário coletivo.

Em reação ao assassinato de Gisberta, a imprensa portuguesa encheu-se de notícias com transfobia a acompanhar. Muitos media recusaram-se durante um tempo a publicar a sua foto e mencionar a sua identidade trans, ignoraram o seu nome social, a possível ligação do caso com transfobia e as declarações públicas dos coletivos LGBTI+. Quando mencionada a questão LGBTI+, frequentemente a falta de reconhecimento da diferença entre identidade de género, expressão de género e orientação sexual, manifestavam-se com as notícias. A título de exemplo:  “a sentença não dá como provado que o crime tenha sido motivado devido à orientação sexual da vítima”, lemos numa notícia de 2006 ao Público, confundindo a orientação sexual com a identidade de género. “Gisberto Júnior, um brasileiro sem-abrigo e doente em fase terminal”, descreve o Expresso em 2008 a Gisberta, ignorando a sua identidade trans, tanto no seu sentido geral, como a sua forma feminina. De certa forma, o caso da Gisberta pode ser marcado como um divisor histórico nos direitos trans em Portugal. A história de Gisberta trouxe como nunca reflexões sobre a identidade de género, a transfobia e os direitos humanos das pessoas trans em Portugal.

Mudanças no Código Penal, como o reconhecimento de crimes baseados na discriminação da identidade de género, leis como a do reconhecimento legal da identidade de género em 2011, locais como o Centro Gis — Centro de Respostas às Populações LGBTI, em 2017, e a Marcha do Orgulho LGBTI+ do Porto, no ano da sua morte, nascem com o nome de Gisberta em mente. A mulher trans virou mártir, e até hoje permanece como símbolo da luta LGBTI+.

Muita coisa mudou, é impossível dizer que vivemos no mesmo Portugal que 2006 em termos dos direitos trans e LGBTI+ num todo. Novas leis, novos paradigmas e uma mudança crescente nos valores: mas ainda existe muito por fazer, o ativismo LGBTI+ continua a denunciar a existência de estruturas que formam a opressão das pessoas LGBTI+. A título de exemplo, as pessoas trans não nacionais permanecem sem direito à autodeterminação da identidade de género. Gisberta vira mártir para a luta trans, mas o símbolo não é forte o suficiente para devolver direitos a quem ocupa a mesma posição que Gisberta ocupou.

Com um Porto que tenta esquecer a “mulher a quem a cidade falhou”, a Comissão de Toponímia do Porto recebeu já três pedidos para a atribuição do nome de Gisberta a uma rua do município. Em 2010, foi o projeto “Viver a Rua”, em 2020, foi a atriz Sara Barros Leitão e em 2021, 15 anos depois da morte de Gisberta, a Comissão da Marcha do Orgulho LGBTI+ do Porto (COMOP) junta-se à atriz para um abaixo-assinado. Vale dizer que esta proposta de pouco teve consensual, sendo um grande alvo de discussão. Por um lado, a Comissão de Toponímia sempre votou em maioria contra a proposta recusado, “a pessoa em si nada fez em prol do Porto, disse Isabel Ponce de Leão, deputada municipal e presidente da Comissão, “Não conseguimos estabelecer uma relação entre a Gisberta e o Porto”, e por outro, ativistas, que resumo perfeitamente com José Soeiro, O nome de Gisberta passou a nomear muito mais do que um caso isolado. Ele diz a discriminação estrutural revelada pelo assassinato, a transfobia das instituições, a falta de reconhecimento das identidades trans, mas também a capacidade de a cidade reagir para afirmar os direitos humanos e ocupar as ruas em seu nome.

 

Muitas pessoas trans possuem uma relação especial com a rua. 

Luís Fernandes falava que os bairros sociais “ou se habitam ou se evitam”, digo o mesmo sobre a rua para muitas pessoas trans. Olhe-se para a Gisberta, vivia nelas. As ruas são um ponto de vulnerabilidade para muitas pessoas trans, cerca de 7 em cada 10 pessoas trans de Portugal reportam evitar certos lugares ou locais por medo de agressão, ameaças ou assédio pela sua identidade LGBTI. Quase 3 em cada 10 denuncia a rua ou outros locais públicos como o local do último assédio motivado por ódio. “A violência de que Gisberta foi alvo continua presente nas ruas do Porto, e um pouco por todo o país”, já dizia a COMOP na carta para a Comissão de Toponímia, “a comunidade trans continua largamente exposta à mesma marginalização, preconceito e violência que entregam às ruas todas as pessoas que a cidade é incapaz de proteger e abrigar com a mesma dignidade a que qualquer ser humano tem direito.

Uma rua com o nome de Gisberta, representa mais do que um nome, representa que o Porto, e as suas ruas, devem pertencer a todas as pessoas, incluindo pessoas como Gisberta: mulheres, pessoas trans, imigrantes, que vivem com VIH/SIDA, em situação de sem-abrigo e/ou que fazem trabalho sexual. As ruas são um local de luta por ocupação. Quem merece ocupá-las e como as ocupa é, infelizmente, tópico de discussão. Pensemos, claro, nas pessoas trans, constantemente policiadas e violentadas nas ruas, mas também, por exemplo, nas pessoas em situação de sem-abrigo, olhadas em repulsa e enxotadas da via pública. Estes são dois exemplos que demonstram o conflito por espaço.

Quando questionados os principais motivos para a diminuição do preconceito, intolerância e, ou violência contra as pessoas LGBTI, as pessoas trans de Portugal relataram para o EU LGBTI Survey II, a visibilidade e participação das pessoas LGBTI no dia a dia (76%), e o apoio da sociedade civil (37%), de figuras públicas e líderes comunitários (36%) como alguns dos maiores fatores. A Rua Gisberta, e o processo que a envolve, para além de imortalizar a sua hístoria, leva em si, por cumprir os fatores em questão, uma forma de promoção da não discriminação.

As pessoas mais atentas já devem ter reparado na falta do agnome “Júnior” no nome da Gisberta Salce. Amplamente retratada como “Gisberta Salce Júnior”, existe uma discussão aberta sobre como representar o nome da mulher, e por consequência, a sua rua, que marcará a sua representação na via pública. Atualmente, o que foi aprovado em Comissão, conta Gisberta com o uso do agnome. A artista travesti Hilda de Paulo destaca que “Júnior” está inteiramente vinculado a uma ordem patriarcal, logo, ao modo capitalista de um nome familiar, ou seja, do patriarca que detém algum poder, ou ainda, da transferência de poder entre homens, do pai para o filho, esse agnome carrega também toda uma perspectiva CIScolonial”. Para a historiadora, o projeto ignora a história do agnome no Brasil, removendo a identidade brasileira da Gisberta, tratando-a como uma portuguesa. “Júnior” é então, um reforço da cisnormatividade sobre a Gisberta, mas também uma manifestação do etnocentrismo.

Afinal, revia-se a imigrante enquanto “Júnior”?  A COMOP e a atriz Sara Barros Leitão insistiram em 2021 que cumpriram a autodeterminação da brasileira, estando disponíveis para mudar caso surgirem-se provas de que Gisberta não usava o agnome. Quem era próximo a ela informa que se apresentava como Gisberta Salce Júnior. Consideramos importante sua própria autodeterminação, mas reconhecemos que há uma questão ideológica a ser discutida”. Mas a verdade é que existe registo de cartas que revelam como ela se apresentava, a sua cunhada, Leonor Salce, reforçou este dado. Sim, tal como dito por Hilda de Paulo, as mulheres trans poderão utilizar “Júnior” como parte da construção do seu nome, mas tendo em conta o que ele representa, mais a evidência da sua rejeição por parte da Gisberta, será esta realmente a melhor opção?

Estas são reflexões que vejo completamente ignoradas sobre o projeto, falo até por mim, que as descobri muito tempo depois de tudo começar. Oiçam-se as pessoas trans, mas mais que tudo, oiçam-se as pessoas trans imigrantes brasileiras. Oiça-se Gisberta Salce. A sua pessoa, mesmo em morte, não é um objeto de livre manipulação. Seja respeitado o seu nome.

 

Conseguiu-se uma rua para a Gisberta, mas é preciso mais. 

A rua é a imortalização de uma história que queremos recusar esquecer, mas além da imortalidade de Gisberta, cujo mal que sofreu em vida já não pode ser revertido, é preciso prevenir a morte, física e social das pessoas trans que ainda vivem dominadas pela transfobia. É preciso terminar com as estruturas que alimentam a sua opressão. O simbólico é importante, mas além dos significados que habitarão a Rua Gisberta Salce, se crie ação, se crie resistência, se crie libertação. Uma rua será pouco mais do que uma homenagem bonita, se o Porto não refletir sobre a sua transformação.

 

Assinala connosco o Dia Internacional da Memória Trans!

Mais sobre o Autor: Pedro Valente começou o seu ativismo pelos direitos LGBTI+ aos 16 anos, em Ovar. Paralelamente, iniciou a sua formação como Técnico de Apoio Psicossocial no Porto. Hoje, como estudante de Sociologia na Universidade do Minho, continua a explorar e intervir em várias temáticas sociais.

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Fontes consultadas:

Acusados 13 jovens. Correio da Manhã. (2006).

BORGES VIEIRA, André — Gisberta vai finalmente ter uma rua do Porto com o seu nome. Público.(2023).

DE PAULO, Hilda — Pode a artista brasileira, imigrante e travesti Hilda de Paulo tomar a palavra? Interruptor. (2022).

EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS (FRA) — The EU LGBTI II Survey. (2019).

FAGUNDES, Susana Isabel de Araújo — Um crime de ódio chamado Gisberta: uma abordagem crítica e interseccional sobre os conteúdos da imprensa em Portugal. Universidade do Porto, 2017.

gisberto veio para portugal concretizar o sonho de ser mulher. Público. (2006).

Jovem condenado a oito meses de prisão por omissão de auxílio. Expresso. (2008).

LARANJO, Tânia — Menores suspeitos de matarem Gisberta condenados a internamentos até 13 meses. Público. (2006).

LARANJO, Tânia — MP diz que jovens do Porto não consumaram a morte de Gisberta. Público. (2006).

LUSA ; PÚBLICO — Mãe da transexual Gisberta Júnior admitida como assistente no processo. Público. (2008).

LUSA — Movimentos de defesa dos homossexuais “indignados” com sentença no caso Gisberta. Público. (2006).

MARCHA DO ORGULHO LGBTI+ DO PORTO — No ano em que se assinalam 15 anos desde o assassinato de Gisberta Salce Júnior, surge um movimento cívico para … (2021).

MARQUES RODRIGUES, Catarina — Gisberta, 10 anos depois: a diva transexual que acabou no fundo do poço. Observador. (2016).

MANUEL CORREIA, André — Dar o nome de Gisberta a uma rua da Invicta? “Não conseguimos estabelecer uma relação entre a Gisberta e o Porto”. Expresso. (2021).

NEGREIROS, Adriana — Gisberta, a transgênero brasileira que pode virar nome de rua em Portugal. UOL Tab. (2021).

ROSENBUSCH, Cláudia — Transsexual: 13 menores julgados. TVI Notícias. (2006).

SOEIRO, José — Gisberta não fez nada pelo Porto? Expresso. (2021).

TGEU — Gisberta Campaign (2006).

Trans Murder Monitoring 2023 Global Update. TGEU 2023.

Viu bater em Gisberta. Correio da Manhã. (2007).

Autor

  • Pedro Valente

    Com uma formação como Técnico de Apoio Psicossocial e atualmente estudante de uma Licenciatura em Sociologia, iniciou o seu ativismo em Ovar aos 16 anos. Hoje, continua a estudar e intervir em várias temáticas sociais.

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