O Vaticano publicou recentemente um documento doutrinal¹ que demorou cerca de 5 anos a ser concluído no qual alerta para um conjunto de, supostas, “graves violações da dignidade humana” observadas atualmente.
Mas o que revela esse documento e porque é importante falarmos sobre ele? Analisa connosco ponto por ponto o que o documento doutrinal diz, e não diz, sobre as pessoas LGBTI+ e as chamadas “teorias de género”, e entende qual a nossa posição sobre o assunto.
O que o Vaticano condena?
Marcado pela teologia católica, o Vaticano começa por denunciar as óbvias graves violações da a “inalienável dignidade” humana:
a pobreza
a guerra
a marginalização das pessoas com deficiência e pessoas migrantes
o tráfico humano
os abusos sexuais
a violência contra as mulheres e
a violência digital.
E segue destacando a sua firme oposição, aos temas tidos como fraturantes da sociedade:
o aborto
a gestação de substituição
a eutanásia e
o suicídio assistido.
Dentro de tantas questões essenciais à discussão da dignidade humana, o Vaticano toma ainda espaço para opor-se ao que chama de “teoria de género” e à ideia da “mudança de sexo”.
Entendemos que estas declarações acabam por ser contraditórias às declarações do Papa Francisco, que se havia mostrado a favor do acolhimento de pessoas trans na Igreja.
O Vaticano coloca-se do lado das pessoas LGB+
O documento doutrinal distancia primeiramente tais “teorias de género” das questões de orientação sexual, afirmando ser uma violação da dignidade humana “que, em alguns lugares, não poucas pessoas são encarceradas, torturadas e até mesmo privadas da vida unicamente pela sua orientação sexual”. O Vaticano afirma que “cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito” devendo evitar-se a “injusta discriminação e particularmente toda a forma de agressão e violência”. Aqui, claramente o Vaticano coloca-se do lado das pessoas lésbicas, gays e bissexuais, ou que não tenham uma orientação sexual heterossexual (LGB+) afirmando que são alvo de graves violações da sua dignidade humana só por gostarem de quem gostam.
No entanto, prossegue apontando os supostos “intensos pontos críticos da teoria de género”.
As polémicas “teorias de género” a que o Vaticano se opõe serão uma ameaça?
“A Igreja recorda que a vida humana, em todos os seus componentes, físicos e espirituais, é um dom de Deus, que se deve acolher com gratidão e colocar a serviço do bem”, diz o documento. Até aqui tudo nos parece fazer sentido. No entanto, o documento acrescenta:
“Querer dispor de si, como prescreve a teoria de género, independentemente desta verdade basilar da vida humana como dom, não significa outra coisa senão ceder à antiquíssima tentação do homem que se faz Deus e entrar em concorrência com o verdadeiro Deus do amor, revelado no Evangelho.”
Estará aqui o Vaticano a apontar o dedo à “mudança de sexo” que algumas pessoas trans necessitam, como uma tentativa de se “fazerem Deus”? Afirmamos que nenhuma pessoa trans ou de género diverso que tenha de efetuar uma mudança de género ou de sexo, se acha Deus ao fazê-lo. Este tipo de insinuação ou suposição, é no mínimo desconhecedor de que muitas pessoas trans, crentes em Deus, passam. Deixamos o exemplo da história de vida do Andreo:
“Tinha cerca de 11 anos quando me coloquei na frente do espelho e gritei com Ele (Deus). No meio de lágrimas e raiva perguntei-lhe: Porquê? Porquê eu? Porque não me fizeste menino? Porque tenho de estar a passar por isto? Dá-me um sinal de que vai ficar tudo bem comigo, de que vou poder ser o menino que sinto ser.”
Andreo, na altura uma criança, simplesmente sentia que não se identificava como menina mas sim como menino. Vinha de uma família católica e havia sido ensinado “a conversar com Deus”. Recorda-se que foi a partir desse dia que deixou de acreditar em Deus.
Perguntamos: que ameaça traz ao mundo uma criança ou adulto poder mudar de género, se isso é o que realmente sente que lhe trará paz e felicidade?
Não se entende no documento, se aquilo a que o Vaticano chama de “teorias de género” são os milhares de estudos de género académicos e científicos existentes no mundo inteiro, ou se se refere à chamada “ideologia de género” que os movimentos anti-direitos e anti-LGBTI+ falam. Independentemente do caso, afirmamos desde já que não existe uma tentativa de promover uma “ideologia de género”, como retrata o Vaticano, pois, não existe sequer um conjunto uniforme de explicações ou respostas ao género, tanto nos movimentos pelos direitos LGBTI+ ou nas teorias científicas do género. Com isto esclarecido, entramos na discussão assumindo uma abordagem das teorias científicas sobre o género.
O que o Vaticano chama “teoria de género” não é um conjunto de teorias unidas, mas sim um campo de explicações científicas que competem para explicar o género. Apesar de ser consensual que o género seja uma construção social (nas ciências sociais), existem diversas explicações para as questões de género e diversas soluções, por vezes contraditórias entre si².
O Vaticano afirma que as “teorias de género” negam a existência de diferenças sexuais.
O documento doutrinal critica ainda a “tentativa”, por parte dos defensores da “teoria de género”, de negar as diferenças sexuais. “Tal diferença fundante é… na dualidade homem-mulher… e a fonte daquele milagre…que é a chegada de novos seres humanos ao mundo”, sustenta.
Primeiramente há que perceber que diferença e desigualdade são fenómenos diferentes. A diferença sexual encontrada nos corpos, não é um problema, e não pretende ser eliminada. Nas teorias sobre o género, a questão está na desigualdade de género, e não nas diferenças sexuais. A desigualdade de género existe devido à desigual valorização, socialização e distribuição de recursos que se atribuí às pessoas com base nas suas diferenças sexuais e papéis socioculturais estabelecidos.
Sabemos que é consensual a existência de diferenças nas características sexuais humanas. No entanto, argumentamos que qualquer explicação social do género não pretende apagar tais diferenças, mas sim entender como atribuímos significado sociocultural às mesmas. Da mesma forma, o reconhecimento de uma construção social do sexo também não nega a existência de diferenças nas características sexuais, afirma apenas que o modo como as entendemos, organizamos e reforçamos é socialmente produzido.³ ⁴
Argumentamos, ainda, que não é a existência de pessoas que gostam de outras cujas características sexuais são iguais às suas, nem a existência de pessoas que mudam de sexo e/ou de género que faz com que o “milagre que é a chegada de novos seres ao mundo” esteja em risco. Muitas são as pessoas LGBTI+ que procuram contribuir para a continuidade da espécie humana, e as pessoas trans não são exceção⁵ ⁶.
O Vaticano não entende que a “mudança de sexo” é uma questão de dignidade humana.
O documento doutrinal afirma ainda que “Neste sentido, o respeito ao próprio corpo e àquele dos outros é essencial diante da proliferação dos pretensos novos direitos, propostos pela teoria de género” e que “a dignidade do corpo não pode ser considerada inferior àquela da pessoa como tal”. Acrescenta que “Tal verdade merece ser recordada sobretudo quando se trata do tema da mudança de sexo”.
Concordamos que “o ser humano é composto de corpo e alma, unidos de modo incindível, sendo que o corpo é o lugar vivente em que a interioridade da alma se expande e se manifesta, inclusive através da rede das relações humanas”, diz o texto.
Concordamos ainda que “Constituindo o ser da pessoa, alma e corpo participam daquela dignidade que conota o ser humano” e que “É no corpo, de facto, que cada pessoa se reconhece gerada por outros…”
O Vaticano parece não entender que a mudança de sexo é uma questão de dignidade humana⁷ ⁸. Usando as suas próprias palavras:
1) o respeito ao próprio corpo e àquele dos outros é essencial. – muitas pessoas trans conseguem respeitar melhor o seu corpo após realizar procedimentos médicos ou cirúrgicos que melhor alinham o seu corpo “tipicamente” associado ao género com que se identificam; Da mesma forma, se uma pessoa modifica o seu corpo, e essa foi a sua livre vontade informada, essa decisão deve ser respeitada.
2) o corpo é o lugar vivente em que a interioridade da alma se expande – muitas pessoas trans sentem exatamente que a sua alma tem uma identidade e o seu corpo não corresponde. Uma vez que não é possível mudar a alma, muda-se o corpo.
3) é no corpo que cada pessoa se reconhece – ora, se as pessoas trans não se reconhecem nos seus corpos, forçá-las a viver uma vida num corpo que não escolheram não será uma forma de violação grave à sua dignidade humana?
O Vaticano não entende a diferença entre sexo e género, mas ela existe na experiência humana.
O documento afirma que “Não se deve ignorar que o sexo biológico (…) e o papel sociocultural do sexo (…) podem-se distinguir, mas não separar.” E acrescenta ainda que “Qualquer intervenção de mudança de sexo normalmente arrisca-se a ameaçar a dignidade única que a pessoa recebeu desde o momento da conceção”.
Ora, o sexo e o género são mais do que uma distinção teórica. Ela existe na experiência humana. As pessoas trans e de expressão de género não conforme (à norma), entre tantas outras, são capazes de vivenciar de formas diversas as construções do género. E como vimos anteriormente, como é que alguém é capaz de ter dignidade vivendo num corpo que não sente ser o seu?
Enquanto ocupamos sexos, isto não significa que temos um destino social, sendo possível vivenciar outros papéis atribuídos aos mesmos. É possível ir além dos papéis socioculturais atribuídos com base no sexo, desde as diferenças mais subtis nos papéis de género, à expressão de género, uma vivência da sexualidade não heteronormativa, até a uma completa rejeição do género atribuído, reivindicando outra identidade de género. Não se apela necessariamente a uma rejeição generalizada das construções do género, mas que cada pessoa possa escolher como vive essas ideias.
Como vimos anteriormente, o Vaticano declara a “mudança de sexo” como uma violação da dignidade humana, mas abre explicitamente uma exceção para a alteração das características sexuais das pessoas intersexo, ou como chama, pessoas com “anomalias dos genitais”:
“Isto não significa excluir a possibilidade que uma pessoa portadora de anomalias dos genitais, já evidentes desde o nascimento ou que se manifestem sucessivamente, possa decidir-se por receber assistência médica com o fim de resolver tais anomalias. Neste caso, a intervenção não configuraria uma mudança de sexo no sentido aqui entendido.”
Fica claro que para o Vaticano, a violação da dignidade humana é a violação das normas de género. Parece afirmar que as pessoas trans, ao escolherem saírem das normas do seu género atribuído à nascença realizando procedimentos médicos, “violam a dignidade humana”. Já os mesmos procedimentos, realizados em pessoas intersexo, que permitem o reforço das noções típicas de “sexo feminino” e “sexo masculino”, inclusive muitas vezes de forma não consensual, são colocadas como um caso à parte.
É de lamentar o Vaticano ter ignorado a oportunidade de denunciar as alterações não consensuais das características sexuais nas pessoas intersexo, reconhecidas continuamente como uma grave violação da dignidade humana⁹.
A “Colonização ideológica” da Igreja ou da “Teoria de género”?
O Vaticano afirma como a “teoria de género” promove uma “colonização ideológica”, mas ignora como a própria teologia católica foi e tem sido usada para o domínio das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e outras minorias fora das normas de género, impondo sobre as mesmas as suas ideias de mulher e homem¹⁰.
As chamadas “terapias de conversão” permanecem uma realidade mundial¹¹, sendo ignoradas no documento doutrinal. E que apesar do nome corriqueiro que receberam, deixamos claro desde já que não são “terapias” em qualquer sentido, estas acontecem também em contextos religiosos.
Não podemos deixar de sentir como uma “colonização ideológica” todas as tentativas que se tem sentido ao longo dos tempos, e ainda presentes¹², em nome da religião, para alterar as vivências da orientação sexual, identidade de género e expressão de género para dentro das suas construções binárias de mulher e homem, sem quaisquer resultados comprovados.
Não esquecemos também da colonização ideológica das vivências de género dos povos indígenas colonizados pelo mundo europeu em nome da religião¹³ ¹⁴ ¹⁵. Na presença de experiências que desafiavam o género binário ocidental, importámos muitas vezes as nossas leis anti-sodomia para esses povos para não desafiar as conceções católicas de género e sexualidade¹⁴ ¹⁵. Ainda hoje vemos países colonizados pelo género binário com punições que o Vaticano afirma incompatíveis com a dignidade humana¹⁴, mas este não se estende sobre a sua História.
Dá que pensar: será a teoria de género uma tentativa de colonização ideológica ou será antes a Igreja uma colonização ideológica de género?
FONTES CONSULTADAS:
- Vaticano (2024) – Declaração Dignitas infinita sobre a dignidade humana.
- GIDDENS, Anthony ; SUTTON, Philip W. (2021) – Gender and Sexuality. In Sociology. 9.ª ed.
- FAUSTO-STERLING, Anne (2000) – Sexing the Body: Gender Politics and the Construction of Sexuality.
- HEILBORN, Maria Luiza (1994) – De que gênero estamos falando? In Sexualidade, gênero e sociedade.
- DO CARMO, Milena (2024) – Parentalidades dissidentes: o cuidado exercido por homens trans* no Brasil e em Portugal.
- GATO, Jorge [et al.] (2021) – Building a rainbow family: Parenthood aspirations of lesbian, gay, bisexual, and transgender/gender diverse individuals. In Parenting and couple relationships among LGBTQ+ people in diverse contexts.
- PARK, Rachel H. [et al.] (2022) – Long-term outcomes after gender-affirming surgery: 40-year follow-up study. In Annals of Plastic Surgery.
- SUESS SCHWEND, Amets – Trans health care from a depathologization and human rights perspective. In Public Health Reviews.
- United Nations Human Rights Council (2024) – Combating discrimination, violence and harmful practices against intersex persons (A/HRC/55/L.9).
- O’SULLIVAN, Sandy (2021) – The Colonial Project of Gender (and Everything Else). In Genealogy.
- Global ban needed on bogus ‘conversion therapy’, argues UN rights expert. UN News.
- MARUJO, António (2024) – Bispo de Leiria não alinha com “coisas estranhas” como as “terapias de conversão” de pessoas LGBT. 7 Margens.
- SWEET, James H. (2009) – Mutual misunderstandings: Gesture, gender and healing in the African Portuguese world. In Past and Present.
- MAMBONDIYANI, Andrew (2023) – The colonial legacy of anti-LGBTQ+ laws in Africa. Thomson Reuters Foundation News.
- ELNAIEM, Mohammed (2021) – The “Deviant” African Genders That Colonialism Condemned – JSTOR Daily
Authors
-
Com uma formação como Técnico de Apoio Psicossocial e atualmente estudante de uma Licenciatura em Sociologia, iniciou o seu ativismo em Ovar aos 16 anos. Hoje, continua a estudar e intervir em várias temáticas sociais.
View all posts